Gingando pela Paz no Haiti

Relatos de um capoeirista em terras haitianas

Archive for janeiro \29\+00:00 2009

Formação de hábitos

Posted by flaviosaudade em 29/01/2009

 

 

 

A capoeira é rica em recursos pedagógicos, por tanto uma ferramenta muito poderosa para a educação. Mais que permitir ao corpo transceder os seus próprios limites, mais que oferecer ao seu praticante um produtivo caminho para a descoberta das suas capacidades, quando bem utilizada proporciona uma profunda mudança comportamental. E é essa mudança que buscamos alcançar a partir da formação de hábitos, uma das etapas mais importantes do projeto.

 

A maior parte de nossos alunos apresentavam hábitos muito rudimentares e quase nenhum senso de organização ou de higiene. Jogar papel no chão, deixar roupas e calçados espalhados,  urinar em qualquer lugar eram apenas alguns dos problemas que identificamos. Todos hábitos comuns à boa parte dos haitianos.

 

Para driblar esta cultura, desenvolvemos uma série de atividades que iniciaram pela organização pessoal:

 

 

 

Definimos um espaço próprio para os calçados e roupas, pois até então os alunos chegavam e deixavam as suas coisas de qualquer maneira e em qualquer lugar. Hoje, cada um ao chegar, após saudar à todos (Iê!), dirige-se ao local determinado para deixar as suas coisas antes de entrar na roda.

 

Iniciamos a pintura do espaço objetivando fortalecer o vínculo e criar um ambiente familiar. Realizamos atividades para fortalecer o sentimento de responsabilidade, de pertencimento, e da importância de cada um no grupo. Hoje já é bastante comum alguns alunos chamarem a atenção dos outros para a manutenção da organizão.

 

 

 

Outro ponto importante é a formação de hábito no que diz respeito à higiene, onde a maior parte dos alunos não apresentavam qualquer noção; unhas grandes e sujas, pôr a mão na boca durante os treinos após executar movimentos com as mãos no chão eram hábitos muito comuns. Após algumas atividades, algumas apenas simples atitudes estão contribuindo muito para a conscientização de grupo. Podemos dizer com segurança que já alcançamos um avanço considerável. Porém, é preciso reforçar a mensagem sempre que a oportunidade surgir. E olha que não são poucas… Pouco a pouco a formação de hábitos vai se tornando regras que os alunos acabam por intronizar. Claro, alguns com mais facilidade, outros nem tanto. Mas, são justamente esses que nos permite reforçar o aprendizado.

 

Uma de nossas regras é que ninguém pode estar fora do espaço da capoeira no horário das aulas. Todos devem chegar, saudar o grupo, arrumar devidamente os seus pertences e sentar na roda. e ao chegar na aula passada, para a minha alegria e comoção, encontrei todos, todos os alunos sentados na roda. Com a assistência de um educador, porém já é um grande avanço. Aliás, na ocasião também estavam presentes crianças que aguardam a abertura de uma nova turma. Ao todo, eram cerca de 50 crianças.

 

Ao chegar não pude conter o sorriso… a alegria foi tamanha que o idioma não fez diferença. Todos bateram palma e desfiaram sorrisos. Mas, ao ir verificar os calçados para complementar meu contentamento, vi que estavam totalmente desarrumados… E quando o sorriso deu lugar a uma expressão de descontentamento (creio tenha sido essa a minha expressão) prontamente todos levantaram para arrumar as sandálias, numa alegria que faz parecer que no mundo não há sofrimento. 

 

E como nem tudo são flores, tivemos um problema nesta mesma aula. Não contamos com uma estrutura, o espaço ainda está sendo reformado e faltam ainda muitas coisas, como banheiro, por exemplo. As necessidades fisiológicas são feitas em um local que determinamos, porém não possui sanitário ou papel. E no momento da arrumação dos calçados uma aluna deu falta de uma de suas sandálias. Após procurarmos, encontramos a sandália suja de fezes… Problema identificado, uma solução é exigida. Após todos estarem em forma, lembrei-os da importância de cada um para a organização da casa e comuniquei que naquele dia ninguém iria beber água. (levamos sempre água para o final das aulas). Que, se todos éramos responsáveis pelo problema iríamos todos compartilhar da solução. Alguns deles esboçaram palmas, mas não seguiram adiante pois creio que meu semblante era um pouco carregado. Aquilo definitivamente tinha me deixado muito chateado. 

 

Ao final, para alegria de todos, não utilizei toda a água para lavar a sandália. Mas, fizemos um bom exercício de divisão da água para que todos pudessem tomar.

 

Caminhamos bem; devagar, porém sempre, objetivando tornar significativo cada aprendizado para cada um de nossos alunos e aprender com eles. E é muito gratificante notar o amadurecimento de todos – o meu inclusive – e sentir os laços se fortalecendo cada dia mais.

 

 

 

 

 

 

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Passando roupa à ferro frio

Posted by flaviosaudade em 27/01/2009

 

 

 

Relatei no início do blog, que um dos graves problemas do Haiti é a falta de energia. Grande parte da população, principalmente dos bairros mais desfavorecidos, é obrigada a viver na total escuridão. É comum passar pelas ruas e deparar com barraquinhas iluminadas por candeeiros, velas… E na maior parte das ruas a luz chega apenas quando os carros passam. Fora isso, as pessoas têm de se virar como podem. Mas, ainda assim a atividade não pára e é muito comum a venda de mercadorias.   

 Já havíamos sentido isso na pele, pois as aulas da tarde costumavam terminar à noite. E por diversas vezes tivemos de recorrer à vela para não interromper o conteúdo. Bem, continuamos sem energia, porém os dias parecem mais longos e estamos conseguindo finalisar nossas atividades antes da noite cair.  

Mas, nos últimos dias estamos convivendo, em fim, com este problema. Após um período no hotel Oloffsom mudamos para uma casa no bairro de Paco. Uma casa grande que lembra muito as antigas residências do interior; pé direito e portas altas, móveis antigos, um quintal agradável com árvores frutíferas, uma bela mangueira, inclusive. [Salve a Estação Primeira!] No entanto, a casa necessita de muitos ajustes, principalmente no que se refere a energia elétrica. Pois a energia distribuída pela empresa responsável é racionada de acordo com o “plano” contratado. E pelo que parece, o nosso nos dá direito a poucas horas de energia por dia. E ainda que tenhamos um mega gerador, que mais parece um carro quando ligado, e o inverté, um sem número de baterias responsáveis para compensar as faltas, os períodos na escuridão têm sido longos e difíceis. As vezes impressiona, encontramos a casa imersa na escuridão enquanto grande parte das casas ao redor estão iluminadas.  

 

Um caso muito interessante que não poderia deixar de contar, foi quando uma haitiana foi passar algumas peças de roupas. Enquanto discutíamos alguns assuntos da casa, ela se ocupava com as roupas em outro cômodo da casa. Ao pegar as minhas roupas notei que não estavam bem passadas. E pude verificar isso muito bem, pois este é um quesito que sempre apreciei; asseio que aprendi com a vovó… E por gostar das minhas roupas muito bem passadas sempre fiz questão de fazer eu mesmo; pelo menos até aquela ocasião. Porém, como ainda não falo quase nada do idioma, resolvi deixar pra lá e depois passar eu mesmo as roupas.

 

O fato, que só depois percebi, é que no momento em que ela estava passando as roupas não tínhamos energia na casa… Não tínhamos energia da rua e o gerador estava desligado, pois somente quando peguei as minhas roupas é que descemos para ligá-lo. Pulga atrás das duas orelhas, fui conferir nas roupas. Devidamente dobradas, mas sem qualquer sinal de ferro morno que seja. Pensava que estavam mal passadas, mas na realidade parecem não terem visto o ferro. Ficamos pensando se isso faz parte da cultura, ou se levamos uma volta daquelas…  

 

A questão é que este acontecimento demonstra bem um fato corriqueiro na relação de trabalho por aqui. Ainda que seja muito difícil conseguir um emprego, principalmente em uma organização internacional, muitas pessoas não desempenham a função como deveriam, ou cometem atitudes como essa. Desta forma, as relações de confiança entre empregador e empregado por aqui são ainda mais frágeis que no Brasil, exigindo atenção mais redobrada e um bom tempo para que a confiança seja estabelecida.

 

 

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Gravação do video para o Carnaval do Haiti

Posted by flaviosaudade em 26/01/2009

 

Aguardando o inicio das gravações

Aguardando o início das gravações

 

No último sábado realizamos a gravação das imagens para o vídeo clip de Bag Nós, música do cantor Izie One que marca a primeira parceria entre elementos dos carnavais do Brasil e do Haiti, que já está sendo veiculada nas rádios haitianas. As imagens foram feitas em Kay-Nou e mobilizou um número expressivo de pessoas, entre a equipe de produção, trabalhadores das obras, figurantes e curiosos e logo estará na tv. Bag Nós, Nossos Anéis, é como um símbolo de comunhão entras as pessoas.

 

E, mais uma vez, a capoeira esteve presente com toda força para surpreender. Isto porque grande parte dos haitianos ainda desconhecem o que é a capoeira. Em nossa aulas vez ou outra contamos com alguns curiosos, mas para a grande massa a arte da capoeiragem ainda é uma novidade. Puder constatar isso muito bem no momento em que começamos a cantar. Olhares curiosos e de estranhamento buscavam entender o que se passava, enquanto as crianças cantavam e batiam palma ao som do berimbau.

 

 

E foi neste mesmo ritmo que caminhamos sobre um terreno pedregoso para formar uma grande e animada roda. Luz, câmera, ação! E a roda teve início. Foi uma felicidade muito grande poder mostrar um pouco da nossa obra. Como Kay-Nou, que começa a nascer dos escombros, assim nossas crianças começam a se re-descobrir, a renascer.

 

 

 

Cambaxirra todo bobo

Cambaxirra todo bobo

  

 

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Ética ou progresso?

Posted by flaviosaudade em 25/01/2009

 

Ao ler sobre o concurso, mais especificamente sobre o tema, tive a certeza de que discorrer sobre ele seria um bom exercício, apesar de profundamente trabalhoso. E após traçar um planejamento duas idéias surgiram: A Política e a Bandeira Nacional, mais propriamente a sua inscrição. Duas coisas que no primeiro momento deveriam estar associadas, mas que na prática estão cada dia mais distantes. A única bandeira que deveria tremular mais alto dá lugar para outras das mais diferentes cores, formas e tamanhos. O progresso, que deveria reger todo e qualquer ato, confunde-se com interesses mesquinhos que se valem dos mais ardilosos artifícios para alcançar a satisfação pessoal. Apesar de a ética perpassar todas as áreas das relações humanas, na prática é flagrante que o seu exercício esteja ainda muito distante da realidade da maioria das pessoas. A própria formação da sociedade brasileira contribuiu para dificultar até mesmo a compreensão dos princípios mais fundamentais de uma sociedade. Além disso, não fomos educados para o exercício da reflexão, a construir nosso próprio conhecimento a partir do processamento das informações que recebemos dia após dia.

Embora o Brasil fulgure hoje com uma das principais potências do futuro e esteja na vanguarda de diversas áreas, como pesquisa e produção de energia sustentável, muito ainda necessita ser feito para que possamos alcançar um ritmo de desenvolvimento compatível com nossas necessidades. E boa parte desta empreitada não está ligada propriamente em ações políticas ou de ordem econômica, mas ao desenvolvimento do nosso próprio povo. Por muito tempo estivemos sob um sistema degradante que deixou marcas profundas em nossa formação; marcas que nos acompanham até os dias de hoje e que comprometem nossa caminhada.

Uma delas é a dificuldade de compreender que a liberdade está intrinsecamente ligada à responsabilidade e que para todo ato uma reflexão anterior é exigida; aquelas em que estejam envolvidos os interesses de outrem, principalmente. Ao contrário, popularizou-se a idéia de que é “esperto” quem consegue burlar as leis ou as normas para levantar vantagem. E ainda que não passa de “otário” aquele que buscar agir de forma correta dentro dos limites da lei e do bom censo. Pensamento que pode ter sido fruto de um processo cultural forjado de forma exclusivista, que durante muito tempo preocupou-se em delimitar e alargar a distância entre as classes. E que pouco se mostrou preocupado em desenvolver políticas inclusivas para uma população que se acostumou a viver sempre à margem.

Além disso, a falta de uma educação que, efetivamente, esteja comprometida ao ensino da reflexão é outro fator a ser considerado. Não há como exercer uma postura ética se não sabemos exercitar o próprio pensamento, se não foi criada uma base argumentativa que possibilite a construção do pensamento. Não uma postura que exija apenas a repetição de ensinamentos previamente oferecidos, mas uma postura pró-ativa em que o conteúdo oferecido inspire a busca de novas informações, possibilite a sua maturação para que esta seja transformada em conhecimento. E acima de tudo, que este conhecimento encontre espaço para ser compartilhado.  

Por fim, a ética é fator preponderante para que o progresso ocorra. Mas é preciso estar atento para o fato de que a ética pressupõe um exercício, e que o seu exercício é o próprio progresso, que se dá a cada dia. E que é ainda maior o progresso que ocorre em silêncio, na consciência de cada um de nós. É para este a que devemos direcionar todos os nossos esforços, sem esmorecer, para que possamos construir as bases do desenvolvimento. Termos em mente que é muito fácil transferir a responsabilidade para outras pessoas, buscar culpados para nossas agruras e infortúnios. Mas que o momento exige que assumamos a parcela da responsabilidade que nos cabe. E que para isso ocorra, é imprescindível abandonarmos a concepção de ética que ficou marcada pelas comissões formadas em função do caos de moralidade que se formou no cenário político e compreender que ela é elemento fundamental para contribuirmos para uma sociedade melhor e mais humana.

 

 

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Não Somos Pobres

Posted by flaviosaudade em 25/01/2009

 

 

Que mecanismos devemos utilizar para medir nossa posição na sociedade? Quais requisitos nos definem como pobres? E o que isto implica? Importa é que a pobreza somente existe no terreno das coisas materiais, quando as opiniões são fundamentadas naquilo que cada um veste. Enquanto que a natureza das coisas está na forma em que conduzimos nossas relações e nos valores aos quais atribuímos maior ou menor importância.

 

Desde cedo, somos condicionados a acreditar que ser pobre é ser menos, sempre menos. Ter menores chances de uma boa educação, de um bom emprego ou de um bom relacionamento. No entanto, ser pobre não implica ser menos. Somos iguais, apesar de nossas diferenças. Somos iguais, independente de pensarmos, vivermos e agirmos diferente. A pobreza e a desigualdade são espectros do mesmo infortúnio onde, possivelmente, seu efeito mais devastador esteja na privação do ser humano de empreender seu sonho. E pior ainda, de acreditar na realização dele. O que, muitas vezes , é um mal hereditário.

 

 Lamentavelmente, observamos, cada vez mais, que as relações humanas são baseadas no que cada um possui. A pobreza é vista como mal a ser combatido enquanto a riqueza é o bem maior no qual devemos empregar nossas esperanças, esforços e economias. Mudar de vida é a palavra de ordem. Mas que ordem é essa? A questão, é que ela tem corrompido cada vez mais as relações criando uma sociedade onde o bem material está acima daquilo que é essencialmente humano. Onde o capital é o grande gestor das relações e as inteligências são empregadas para a manutenção do poder e do lucro, fazendo da corrupção moral uma das maiores anomalias do mundo moderno.

 

No entanto, quando experimentamos olhar “para o que se carrega no coração” é que podemos, verdadeiramente, ter noção do valor de cada um. Não há pobreza quando, irmanados, vemos num olhar o potencial, a capacidade e os sonhos. Quando vemos que, apesar das dificuldades e das privações, ainda existem pessoas que escolhem agir de maneira correta, independente de as circunstâncias muitas vezes induzi-las ao erro; que optam por carregar pouco no bolso em lugar de abrirem mão de sua dignidade; que fazem questão de serem felizes e de cultivar o bem acima de qualquer coisa.

 

Num momento em que calculamos os efeitos de nossas ações na natureza, em que fazemos previsões sobre a existência futura no planeta, em que nos deparamos com a urgência da reposição das florestas, talvez seja a hora de cultivarmos uma nova consciência onde não nos sintamos superiores a tudo, mas igual e parte. Onde esteja garantido o direito maior de cada um, seja quem for e onde quer que esteja, de desenvolver-se em sua plenitude e de realizar as mudanças necessárias à sua humanidade. Pois o desenvolvimento é iminente e a evolução um direito irrevogável que não está condicionado aos mecanismos materiais, mas à vontade de cada um e a nós como o Todo. 

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Silêncio: Inocência ou culpa?

Posted by flaviosaudade em 25/01/2009

 

Será possível considerar alguém culpado pelo seu silêncio? Não é difícil encontrar por aí inocente que seja obrigado a permanecer calado, ou culpado que declare inocência. Ainda que existam provas suficientes do contrário. No caso de Capitu, estamos diante de um dos julgamentos mais longos da história nossa literatura. Acusação e defesa apresentam seus argumentos diante de um júri atento. Cada detalhe, por menor importância que pareça ter, poderá representar a absolvição ou a condenação. Dentre eles, dois merecem ser considerados. O primeiro é o fato de a história se passar através da perspectiva do protagonista.  O segundo, o ciúme, que surge vagarosamente e corrompe as páginas que pareciam estar predestinadas a qualquer veredicto, menos ao da incógnita.

 

Embora a história de Bentinho e Capitu provoque em nós as mais diferentes imagens, é preciso atentar para o fato de que, desde o início, as personagens e os acontecimentos são apresentados através da percepção do protagonista. Enquanto que uma história pode oferecer tantas versões quantos forem os envolvidos. Não apenas Capitu, mas todos os personagens, suas características, peculiaridades e até mesmo os possíveis desejos que lhes permeiam a alma eram descritos de maneira muito particular. Além disso, tal perspectiva apresenta fortes indícios de que o protagonista deseja induzir-nos a acreditar que a culpa precede o ato, quando parece insinuar que a inteligência e a sagacidade de Capitu poderiam ser apenas traços de uma tendência à obliqüidade e à dissimulação. Fato que pode ter uma agravante ainda maior, por sua percepção ter sofrido a influência de uma sociedade em que era costume a sujeição da esposa ao marido, quando o pensamento vigente era o de que a mulher deveria ser criada para debater a graça de um vestido, enquanto que o homem, o destino de um império. Sociedade que sempre tratou de forma muito particular “mulheres de espírito”, característica que em Capitu era denunciada desde a infância e que lhe rendeu os mais variados adjetivos.

 

Tal influência pode ter sido o elemento preponderante para que Bentinho se deixasse levar tão cegamente pelo ciúme. Sentimento que toma uma proporção tão grande que contamina até mesmo os momentos passados, quando o seu interesse por Capitu ainda não tinha se manifestado. Seu ciúme impregnava de tal forma seu imaginário e o angustiava, que mesmo o que se passava na cabeça da sua esposa era motivo de desconfiança. Ele busca por força uma confissão, fossem pelos gestos, fossem pelo olhar da esposa. Mas é ele quem confessa, quando afirma reparar em outras meninas. E é ele ainda, que afirma ter olhares mais que fraternais para a esposa do próprio amigo.  Fosse o caso da culpa preceder o ato… Além do mais, Bentinho dizia amar tanto a Capitu, mas não relata em momento algum que levasse consigo alguma lembrança que seja da sua amada, como as fotos da sua mãe e a do amigo Escobar, que permanecem penduradas no escritório. Ou ainda que lhe tenha escrito alguma carta, pois, como ele mesmo diz, todas as outras foram endereçadas ao amigo, ou ainda ao Manduca, que mereceu várias. Dessa forma, fosse o ciúme um direito, a prioridade em gozá-lo possivelmente não seria sua.

 

Por fim, é bem provável que a grande incógnita que nos provoca e inspira, não tenha sido o mérito de a traição ter ocorrido ou não. Mas, a estranheza que Capitu desperta em nosso inconsciente e a necessidade que temos de nos apegar às nossas certezas. Talvez tenha sido esta mesma incógnita a única responsável pela casmurrice que tomou Bentinho. Aquele que, apesar de ter compartilhado da companhia de sua esposa desde a infância, parecia desconhecê-la; aquele que teve o amor, este sim, traído pela dúvida. E será possível o amor onde houver dúvida? Seja qual for o veredicto, o julgamento cabe à consciência de cada um. Assim como a alma de Capitu, que para Dom Casmurro e para nós, continuará em silêncio.

 

 

 

 

 

 

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São Gonçalo do Amarante

Posted by flaviosaudade em 25/01/2009

 

O lugar onde nascemos pode falar muito sobre nós. Mas, talvez não nos demos conta da sua importância. Todas as coisas vividas, todas as coisas sentidas, a família, os amigos que compartilharam conosco de algum momento são como pedras que, postas umas sobre as outras contribuem para o nosso alicerce interior. E isso pode fazer uma grande diferença no decorrer de nossas vidas.

 

De minha parte, tenho muito forte as lembranças da terra de onde vim pequenininho. E devo dizer que carrego muitas recordações. Se alegres ou tristes, a verdade é que tenho comigo um pouco de cada uma delas. E sempre tive muitas pessoas ao meu lado. Assim, se alegres, foram bem mais alegres; se tristes, foi menos difícil superá-las.

 

Hoje, sinto-me como um livro onde para cada pessoa foi/é reservado um espaço. Dessarte, não creio que sou o que penso que sou. Posso ser para mim, mas não para os outros. Sou um para cada um, assim como cada um é um para mim. E como diz a viola de violeiro “não sou bom e não sou mal…”

 

A terra que acolheu meu primeiros passos foi São Gonçalo, na cidade do Rio de Janeiro. Um grande município que pulsa talentos e desejo de viver. Nasci no bairro de Nova Cidade, na Maternidade São Silvestre, onde abri os olhos para este novo mundo às 23 horas do dia 24 de maio de 1977. Dentre muitos que compartilharam comigo esta chegada, estava alguém que se tornaria um grande amigo, o Pacheco. Confrade do jogo de futebol pelas tardes e madrugadas, de muita correria atrás de cafifa, dos piques, dos objetos não identificados no céu… Esta ocasião no dia do nosso aniversário, inclusive. E temos (ainda temos?) a D. Rosa como testemunha.

 

Lá vivenciei muitas coisas, desde enchentes até falta de gás. Ou ainda quando os moradores se uniram para quebrar uma ponte para forçar a prefeitura a pôr fim às várias enchentes que aconteciam à cada chuva. Bem, a rua enche até os dias de hoje e, pelo que parece, os moradores resolveram aceitar a situação. Assim como aceitaram os vários assaltos que se tornaram uma rotina, mesmo à luz do dia.

 

Certamente, muita coisa melhorou, devo dizer. Diminuíram as correrias para ver um corpo estendido no chão (o que pode mudar caso alguém decida por fim ao play ground dos meliantes). Como também diminuíram as correria das crianças para pegar doces no dia de Cosme e Damião. Será que realmente diminuíram ou o “meu mundo” cresceu e dei-me conta que nenhuma dessas coisas eram tão grande assim?

 

É bem verdade que há quem não goste do lugar onde nasceu. Há quem um dia tenha desejado ter nascido em outras experiências… No entanto, cada um tem o seu quinhão nesta vida. E não se passa nada que não se deve passar ou que por nossas escolhas não tenhamos escolhido viver. Assim, tenho orgulho de ser um papa-goiaba e sinto-me demasiado feliz em poder ter compartilhado tantas coisas com tantas pessoas. Mesmo estando loge sinto ainda o cheiro da terra molhada que anunciava a chuva e o chão sob os meus pés de quando ia pelas manhãs até a padaria de Seu João para comprar pão, ou a cavaca.

 

E, estou certo, enquanto todas essas lembranças permanecerem em mim jamais estarei sozinho, esteja eu onde estiver.

 

 

Estação do pensamento

Saudade

 

Sempre foi o mesmo e nunca se queixou

Güentava o tranco sem reclamação

Se se demorava, não deixava de vir

Distante, cumprimentava

Dava gosto, alegria só de ouvir

 

Marcava a hora e por vezes apressado

Logo se ia embora

[Já são dezoito horas]

 

Atencioso, era um portas abertas

Aceitava de bom grado o que lhe reservava a vida

E era um montão de tudo:

Cachorro, bicicleta, trabalhador, vagabundo

Boa praça e um mudo

[Que não era]

Vendedor de lutres, capoeiristas, homens e mulheres, artistas

 

Mas os anos foram passando, e ele se foi amofinhando

[Entristecendo]

Foi sendo deixado de lado

[esquecido]

Com cara de amante largado

[De poucos amigos]

 

Mas, ainda o ouço cá comigo

[O mesmo cumprimento]

Parece até que está aqui

Na estação do pensamento

 

Será que ninguém mais consegue ouvir?

 

E ele ainda se vai, do Barreto até Itambi

E de tempo em tempo ele apita pra mim.

 

Piuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii

 

 

 

 

 

 

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Apresentação para a Governadora Geral do Canadá

Posted by flaviosaudade em 25/01/2009

 

Cambaxirra e Quiça presenteando a Governadora com um berimbau

Cambaxirra e Quiça presenteando a Governadora com um berimbau

 No útimo sábado, 17, tivemos mais um momento importante para as crianças do projeto. Realizamos uma bela apresentação para Michaёlle Jean, Governadora Geral do Canadá que estava em visita ao Haiti. A apresentação aconteceu no Hotel Ollofsom e contou com a presença do Embaixador e da Embaixatriz do Brasil no Haiti, do novo Comandante do BRABATT Coronel Mercês, entre outras autoridades.

Foi uma ocasião muito especial pois voltávamos do período das festas. Os alunos ainda retornavam aos poucos e corríamos contra o tempo para reunir um número mínimo de participantes. Tínhamos duas semanas apenas para o evento e como a maioria estão em situação de rua a tarefa era muito difícil. Apesar de todos os nossos esforços apenas poucos alunos apareciam; o que nos preocupava profundamente, pois a capoeira seria a única apresentação a ser realizada naquela ocasião.

Aquecendo para a apresentação

Aquecendo para a apresentação

Já estávamos nos acostumando com a idéia de ter poucos alunos. Porém, na última aula, que antecedia a apresentação, fomos surpreendidos com um número expressivo de alunos. E, se antes estávamos apreensivos com a falta, agora nos preocupava o excesso de participantes. Mas, ao final, apesar de alguns contratempos, tudo saiu melhor que o esperado. Cerca de 40 alunos participaram da apresentação, que contou ainda com a participação de 4 soldados capoeiristas do Batalhão Brasileiro, lotados no Forte Nacional.

No entanto, não é nada fácil coordenar um grupo tão grande de crianças que em sua grande maioria nunca saíram do seu bairro. Foi visível o encanto deles pelo hotel, tanto que os pedidos para ir ao banheiro não pararam; um após outro, ou todos ao mesmo tempo. Claro que a maior parte pouco se demoravam no banheiro… era o simples desejo de andar pelo hotel.

Três fatos me chamou muito à atenção. Um foi o de as crianças, quase todas elas, pedirem para entrar na piscina. Perdi a conta das tantas vezes que tive de dizer, no meu pobre Kreol, que aquele dia tinha sido para jogar capoeira. Certamente a visão daquela piscina era um convite quase irresistível… O outro, foi quando levei um pequeno grupo ao banheiro. Fiquei impressionado ao vê-los comprimentando as pessoas (E não me recordo de eu mesmo o ter feito). “Bonsoir, Bonsoir… / Boa tarde, Boa tarde…” Tímidos, é verdade, mas de uma educação admirável. O terceiro fato aconteceu com o Cambaxirra, de 7 anos. Todos já tinham retornado do banheiro e faltava apenas ele. E após esperar tempo suficiente resolvi chamá-lo.
Ao abrir a porta encontrei-o com um sorriso largo no rosto brincando com a água que saía da torneira. Parece uma coisa natural, para quem está acostumado a ter água sempre. Mas, para quem convive com o problema da falta dàgua, quem não possui água encanada em sua casa ver a água caindo de uma torneira deve ser algo muito especial. Recorda-me os Trapalhões em O Mágico de Oróis, em que o quarteto sai em busca de água e após descer as escadarias do Cristo Redentor e as ruas do Concovado, no Rio de Janeiro, se depara com uma grande torneira. Momento realmente mágico. Mesma mágia que deve ter vivido o Cambaxirra.

Em fim, cada momento guarda uma oportunidade para aprender. Cada momento guarda uma lição que na maioria das vezes está escondida em pequenos detalhes, que às vezes passam despercebidos. Cabe a nós estarmos mais atentos e aproveitá-los ao máximo.

 

A Governadora presenteando os alunos da capoeira com um belo livro sobre o Canadá

A Governadora presenteando os alunos da capoeira com um belo livro sobre o Canadá

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Samba e Capoeira no Carnaval do Haiti

Posted by flaviosaudade em 23/01/2009

Assim como no Brasil o Haiti também se prepara para o carnaval, que este ano acontece nos mesmos dias. E lá, como cá a folia tem direito a disputa de melhor música, trio-elétrico e tudo. E enquanto na terrabrasilis esquentam-se os tamborins aqui as cornetas do Rara é que entram em cena. Nas rádios e nas inúmeras bancas de cds piratas pelas ruas (sim, este fenômeno também ocorre aqui) já é possível ouvir os candidatos. E arrisco em afirmar que podemos sentir um clima no ar. O carnaval daqui está entre o carnaval da Bahia e Recife; em alguns momentos muito próximo às batidas do axé, noutras bem próximos ao som do frevo.

Porém, este ano o carnaval haitiano terá será um pouco diferente. A razão é participação do Brasil em uma das músicas que concorrerão ao prêmio. A proposta surgiu da idéia de criar um hit misturando elementos da música haitiana com o samba e a capoeira.

A mistura aconteceu num pequeno e modesto estúdio no bairro de Cafufei. O cantor, Izie One, muito conhecido por aqui, já estava gravando quando cheguei. E após sentir o clima da produção, um mix de reggae e música haitiana, começamos a introduzir os elementos brasileiros. Berimbaus, pandeiro, atabaque e agogô; um após outro dava a sua contribuição. E enquanto um a um se juntava à música o pequeno estúdio enchia de pessoas que não se demoravam para entrar no clima e ensaiar algumas danças. Para fechar com chave de ouro, incluímos o coro e as palmas, quando contamos com alguns alunos do projeto.

A música conta ainda com a participação de André Dávila que faz algumas “chamadas” e ainda atua como promotter e produtor visual.  A produção contará ainda com um vídeo que irá será exibido em emissoras de tv do Haiti.

O resultado dessa experiência, mixto de reggae, rara, samba de roda e capoeira, já está sendo veiculado nas rádios. E em breve estará na “passarela” haitiana.

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Algumas atividades realizadas

Posted by flaviosaudade em 21/01/2009

 

As cornetas do haha

Tambou Lapé II / Tambores pela Paz II

 

Assim que chegamos ao Haiti tivemos uma missão à princípio muito delicada. Iríamos participar das comemorações do Tambou Lapé II, show promovido a cada dois meses pelo Viva Rio que atua fortemente na integração e sensibilização da população. Momento em que se apresentam vários artistas locais, em sua maioria de rap,  que cantam músicas sobre prevenção da AIDS (SIDA). O público estimado foi cerca de 3.000 pessoas. Esta edicão foi realizada num bairro chamado Cité Soleil, um dos bairros com maior índice de pobreza do Haiti. O palco era o único local iluminado, pois toda redondeza, pelo que me pareceu, parecia estar sem luz. Confesso, fiquei um tanto apreensivo para a forma com que seríamos recebidos, pois antes apresentaram-se vários grupos locais. Tinha receio de que não agradasse pelo fato de ser estrangeiro e, principalmente, por eles desconhecerem o que é a capoeira. No entanto, mal abri a boca e toquei o berimbau e o povo acompanhou na hora. Coisa mesmo de sinergia! Uma multidão respondendo ao coro, ruas tomadas, pessoas nas janelas, nas lajes. Foi um momento mágico, nunca vi nem senti nada igual. Um importante momento para a capoeira. Até hoje quando caminho pelas ruas vez ou outra alguém canta: Paranaê, Paranaê, Paraná… Agradecimento especial ao querido mestre Genaro, baluarte da capoeiragem do Rio de Janeiro e importante mantenedor desta arte, quem fez esta música em homenagem ao mestre Paraná, um dos maiores tocadores de berimbau que a capoeira já conheceu. Sem dúvida, uma das músicas mais conhecidas em todo o mundo.

 

 

Apresentação no BRABATT / Medal Parede

 

Soldados capoeitistas brasileiros e alunos do GPPEm visita do ex comandante da Tropa, Coronel Fioravante, e do Embaixador e a Embaixatriz do Brasil no Haiti à Kai-Nou, fomos convidados para fazer uma apresentação no Medal Parade, evento de entrega das medalhas para o contigente que estava finalizando a missão. Estavam presentes diversas autoridades e convidados. Levamos seis de nossos alunos e contamos com o apoio de seis soldados que também praticavam capoeira. Devo esclarecer que é uma tarefa muito difícil para um iniciante com pouco menos de um mês de ensino apresentar-se para o público. Ainda mais quando nao se está em um grupo grande. No entanto, para a surpresa de todos, os alunos tiveram um desempenho impressionante. E o que mais me impressiona foi eles entrarem na roda com outros capoeiristas e não se deixarem intimidar. Os movimentos fluíram com total espontaneidade e segurança. Ao final, eles pergutavam se jogaram bem, se as pessoas gostaram… Um momento magnífico que me emocionou demais e, estou certo, eles levarão por toda a vida.

 

 

Exibição do Filme Bimba: A Capoeira Iluminada no CEBH

No dia 15 de novembro, em parceria com o Centro de Estudos Brasileiros no Haiti, levamos 45 alunos para assistir o filme Bimba: A Capoeira Iluminada, uma produção super bem concebida sobre um dos maiores ícones da nossa arte. Foi um momento marcante desde o início, quando nos encontramos em Kay-Nou para nos dirigirmos ao CEBH. Acostumados a vê-las sempre com suas roupas gastas, calças presas com barbantes, camisas em tamanho bem maior, foi uma surpresa muito gratificante encontrá-las todas arrumadas, perfumadas. O filme ofereceu uma oportunidade importantíssima para trabalharmos aspectos importantes para a formação dos nossos alunos. E foi extremamente importante o conhecimento deles da historia do mestre Bimba; um homem negro,  pobre, que através da sua luta e por amor a um ideal conseguiu vencer; ainda que tenha terminado os seus dias em dificuldade.

 

O filme agradou tanto que um casal amigo, ele haitiano, ela francesa, resolveram batizar o filho com o nome do mestre. Pode parecer estranho para nós brasileiros, mas isso reflete bem a influência da nossa cultura por aqui. Bimba veio fazer compahia ao Lula, que hoje conta com 8 meses. Ao final fizemos uma bela roda que contou com a presença da embaixatriz, mulher de espírito forte e simpatissíssima, e de alunos de cursos do centro. Ao som do berimbau, e de cânticos em uníssono, festejamos juntos a amizade e a vida. E mais uma vez a capoeira agiu para celebrar as diferenças e irmanar as pessoas. E o CEBH será mais um local onde o Gingando pela Paz estará presente, oferecendo a cada vez mais pessoas a oportunidade de entrar em contato e de experimentar esta arte brasileira. 

Apesar de tantos problemas, seria errado afirmar que aqui existe apenas miséria, pobreza e sofrimento. Pelo contrário. Existem muitas coisas boas e uma delas é especificamente aquela que se fortalece na falta de outras coisas. A vontade de viver, de aprender. E o haitiano expressa isso claramente. Poderia dizer que é impressionante que, vivendo em condições tão precárias, ainda achem motivos para sorrir, para serem felizes. No entanto, sinto que a alegria deles vem do simples motivo de estarem vivos e do querer-viver. O Haiti necessita de muitas coisas,  porém creio que a necessidade maior seja a de que sejam divulgadas também as coisas boas, pois problemas todo país tem os seus. No entanto, quando se veícula apenas coisas ruins passamos a acreditar que existem apenas coisas ruins. Com isso, os problemas tendem aumentar e cria-se um estigma que afasta pessoas, investimentos. O país é submetido à escravidão econômica e o seu povo condenado ao subdesenvolvimento.

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

  

Beija-flor e uma caxinguelê

Beija-flor e uma caxinguelê

 

 

 

 

 
Saudade e Cambaxirra

Saudade e Cambaxirra

Embaixatriz do Brasil no Haiti e Saudade

Embaixatriz do Brasil no Haiti e Saudade

 

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