A capoeira é rica em recursos pedagógicos, por tanto uma ferramenta muito poderosa para a educação. Mais que permitir ao corpo transceder os seus próprios limites, mais que oferecer ao seu praticante um produtivo caminho para a descoberta das suas capacidades, quando bem utilizada proporciona uma profunda mudança comportamental. E é essa mudança que buscamos alcançar a partir da formação de hábitos, uma das etapas mais importantes do projeto.
A maior parte de nossos alunos apresentavam hábitos muito rudimentares e quase nenhum senso de organização ou de higiene. Jogar papel no chão, deixar roupas e calçados espalhados, urinar em qualquer lugar eram apenas alguns dos problemas que identificamos. Todos hábitos comuns à boa parte dos haitianos.
Para driblar esta cultura, desenvolvemos uma série de atividades que iniciaram pela organização pessoal:
Definimos um espaço próprio para os calçados e roupas, pois até então os alunos chegavam e deixavam as suas coisas de qualquer maneira e em qualquer lugar. Hoje, cada um ao chegar, após saudar à todos (Iê!), dirige-se ao local determinado para deixar as suas coisas antes de entrar na roda.
Iniciamos a pintura do espaço objetivando fortalecer o vínculo e criar um ambiente familiar. Realizamos atividades para fortalecer o sentimento de responsabilidade, de pertencimento, e da importância de cada um no grupo. Hoje já é bastante comum alguns alunos chamarem a atenção dos outros para a manutenção da organizão.
Outro ponto importante é a formação de hábito no que diz respeito à higiene, onde a maior parte dos alunos não apresentavam qualquer noção; unhas grandes e sujas, pôr a mão na boca durante os treinos após executar movimentos com as mãos no chão eram hábitos muito comuns. Após algumas atividades, algumas apenas simples atitudes estão contribuindo muito para a conscientização de grupo. Podemos dizer com segurança que já alcançamos um avanço considerável. Porém, é preciso reforçar a mensagem sempre que a oportunidade surgir. E olha que não são poucas… Pouco a pouco a formação de hábitos vai se tornando regras que os alunos acabam por intronizar. Claro, alguns com mais facilidade, outros nem tanto. Mas, são justamente esses que nos permite reforçar o aprendizado.
Uma de nossas regras é que ninguém pode estar fora do espaço da capoeira no horário das aulas. Todos devem chegar, saudar o grupo, arrumar devidamente os seus pertences e sentar na roda. e ao chegar na aula passada, para a minha alegria e comoção, encontrei todos, todos os alunos sentados na roda. Com a assistência de um educador, porém já é um grande avanço. Aliás, na ocasião também estavam presentes crianças que aguardam a abertura de uma nova turma. Ao todo, eram cerca de 50 crianças.
Ao chegar não pude conter o sorriso… a alegria foi tamanha que o idioma não fez diferença. Todos bateram palma e desfiaram sorrisos. Mas, ao ir verificar os calçados para complementar meu contentamento, vi que estavam totalmente desarrumados… E quando o sorriso deu lugar a uma expressão de descontentamento (creio tenha sido essa a minha expressão) prontamente todos levantaram para arrumar as sandálias, numa alegria que faz parecer que no mundo não há sofrimento.
E como nem tudo são flores, tivemos um problema nesta mesma aula. Não contamos com uma estrutura, o espaço ainda está sendo reformado e faltam ainda muitas coisas, como banheiro, por exemplo. As necessidades fisiológicas são feitas em um local que determinamos, porém não possui sanitário ou papel. E no momento da arrumação dos calçados uma aluna deu falta de uma de suas sandálias. Após procurarmos, encontramos a sandália suja de fezes… Problema identificado, uma solução é exigida. Após todos estarem em forma, lembrei-os da importância de cada um para a organização da casa e comuniquei que naquele dia ninguém iria beber água. (levamos sempre água para o final das aulas). Que, se todos éramos responsáveis pelo problema iríamos todos compartilhar da solução. Alguns deles esboçaram palmas, mas não seguiram adiante pois creio que meu semblante era um pouco carregado. Aquilo definitivamente tinha me deixado muito chateado.
Ao final, para alegria de todos, não utilizei toda a água para lavar a sandália. Mas, fizemos um bom exercício de divisão da água para que todos pudessem tomar.
Caminhamos bem; devagar, porém sempre, objetivando tornar significativo cada aprendizado para cada um de nossos alunos e aprender com eles. E é muito gratificante notar o amadurecimento de todos – o meu inclusive – e sentir os laços se fortalecendo cada dia mais.