Gingando pela Paz no Haiti

Relatos de um capoeirista em terras haitianas

Archive for maio \31\+00:00 2009

A Capoeira à serviço da Humanidade

Posted by flaviosaudade em 31/05/2009

I Caminhada Gingando pela Paz

I Caminhada Gingando pela Paz pela poribição do Comércio de Armas no Brasil. Rio de Janeiro.

 

Li certa vez em um livro de nome, A Liberdade de ser Você Mesmo, do Osho, sobre uma nova forma de revolução. Ao contrário de muitas outras, com seus mártires, lemas e bandeiras, falava ele da revolução silenciosa, aquela que acontece dentro de cada um e que apenas nós seríamos sabedores dela. Dizia ele que este poderia ser um exercício muito difícil e que somente através dela poderíamos alcançar a verdadeira liberdade.

É exatamente nesse ponto em que a capoeira exerce a sua maior força. Ela atua diretamente no íntimo mais íntimo de cada um inspirando mudanças; surpreendendo o corpo e libertando a mente para um novo momento, para um renascimento. E a medida em que o capoeirista penetra em seus fundamentos ele é convidado a olhar o mundo e as relações com outros olhos, de maneira bem mais reflexiva e a assumir o protagonismo da sua história.

Mas, diferentemente da revolução silenciosa do Osho, a revolução da capoeira é compartilhada, celebrada e ao seu tempo e aos poucos está atuando na criação de uma grande rede que está unindo cada vez mais pessoas, de diversas nacionalidades, credos, condições sociais, inspirando-os à consciência para uma nova sociedade. Certamente, temos um longo caminho para percorrer até lá. Ainda arrastamos alguns grilhões que nos impede de seguir adiante com maior agilidade; ainda nos permitimos tropeçar em depressões por quais já passamos. No entanto, as folhas velhas inevitavelmente hão de cair com o tempo dando lugar a novas. À geração que aí está, e principalmente às futuras não lhes basta apenas absorver o conhecimento produzido até aqui, elas chegam com outras necessidades. Neste sentido, modelos, normas e tudo quanto serviu de sustentação até aqui já não mais responde às suas expectativas e a mudança é inevitável.

 

Mas, qual é o papel de cada um de nós educadores?

Para esse momento, é imprescindível que cada um empenhe aquilo que faz de melhor para que possamos, realmente, adentrar uma nova era. É preciso que estejamos despertos e comprometidos pois a responsabilidade, tão importante quanto a própria liberdade, deve estar presente todo o tempo neste processo. E como educadores devemos ter a consciência de que cada um de nossos alunos têm um papel a realizar tão importante quanto o nosso, e que somos apenas mais uma parte, importante, mas uma parte, de um todo.

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Menino quem foi o seu mestre?

Posted by flaviosaudade em 24/05/2009

 

 

“Menino, quem foi seu mestre?

Quem foi que lhe deu guarida?

Quem lhe ensinou a manha de dançar dentro da briga?”

 

Este cântico chama a atenção para uma questão muito importante: a figura do mestre, personagem imprescindível para a manutenção da cultura da capoeira. A maestria é a graduação maior dada ao capoeirista após uma jornada de aprendizado que inclui diversas etapas. E, normalmente, é conferida pelo mestre que lhe deu lição e que lhe acompanhou os passos no caminho do aprendizado. Além disso, culturalmente, ela é validada por outros mestres que podem ou não ter contribuido diretamente para a formação do capoeirista.

Podemos dizer que para ser merecedor desta graduação diversos podem ser os quesitos avaliados. Dentre eles: o domínio dos fundamentos, que incluem: o conhecimento da história, do jogo – os fundamentos da roda, inclusive – , do manancial de cânticos e toques de instrumentos; a prática pedagógica; o trabalho realizado, como atividades para promoção e preservação da cultura da capoeira e da brasileira em geral, seja na sua comunidade ou fora dela; ações para o desenvolvimento social, que hoje se tornou uma característica importante para o curriculo do capoeirista.

 

 

No entanto, é na esfera pessoal onde as exigências serão ainda maiores. É imprescindível que ele tenha uma postura exemplar, visto que ele servirá de referencial e norte para seus alunos, bem como um representante da cultura da capoeira diante da sociedade. Sendo assim, todas as suas ações estarão sendo observadas todo o tempo e ganharão uma dimensão maior pela sua posição. Um erro representarará uma perda muito grande, assim como um um acerto poderá trazer muitos benefícios, tanto para ele quanto para toda a capoeira.

Mas, o que o capoeirista deve fazer para estar preparado para este momento?

A formação de um mestre pode começar cedo, muito antes do capoeirista alcançar as graduações que lhe permitirá ministrar aulas. No momento em que o mestre identifica nele qualidades para tal deve ele ser orientado para que venha reconhecê-las e desenvolvê-las. Neste sentido, tanto um aluno iniciante quanto outro mais graduado podem demonstrar possuirem qualidades para se tornarem mestres. Tal preparação ganhará mais força no momento em que o capoeirista começar a dar aula, o que em princípio deve ocorrer na presença do mestre. E é neste exato momento, em que o capoeirista chega à condição de educador, que ele inicia realmente o seu aprendizado.

Neste contexto duas ações serão importantes. A primeira é desenvolver a sua observação, de forma que a sua percepção esteja cada vez mais apurada. Isso será importante para que ele consiga identificar as necessidades dos seus alunos, eventuais problemas e as oportunidades para o ensino. Desta forma, é imprescindível o estado de vigia, sempre. A segunda é dedicar-se ao exercício da reflexão, tanto para aprimorar a sua metodologia de trabalho, quanto para pensar a capoeira, pois ela está muito além que uma simples manifestação cultural e tem para oferecer ao ser humano bem mais que o simples desenvolvimento físico. Por fim, mas não menos importante, a consciência de responsabilidade. Pois, bem mais que um privilégio – como muitos hão de pensar – a maestria encerra uma grande responsabilidade. Mais que atuar na preservação da cultura e dos fundamentos o mestre deve orientar e zelar pelo bem estar e desenvolvimento de seus alunos, tanto na esfera física como na emocional; um incessante trabalho, uma missão para toda uma existência.

E mesmo após ter conquistado o título o trabalho deve continuar, pois o aprendizado não encerra com a maestria, pelo contrário, tem início neste momento mais um ciclo. O giro que começou aos pés do berimbau deu a volta ao mundo e retornou para o mesmo lugar, assim como um filho que nasce do ventre da mãe e retorna a ele para novamente renascer. Neste sentido, ao mestre é necessário tempo, tempo para experimentar das coisas da vida, de maneira que ele possa orientar seus alunos com a segurança e sapiência de quem muito já viu e viveu, pois a verdadeira maestria é somente o tempo quem traz.

 

 

 

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Puro-Sangue

Posted by flaviosaudade em 18/05/2009

 

Puro-Sangue: um exemplo de coragem

Puro-Sangue: um exemplo de coragem

A capoeira oferece uma oportunidade maravilhosa para laços de fraternidade serem tecidos. Laços estes que podem se perpetuar e durar para a vida toda. Independente do tempo que permaneçamos juntos ou das experiências que compartilhemos esses laços podem ser tão fortes que mesmo o tempo não é capaz de desatar. E quando todos compartilham do mesmo sentimento a capoeira é como um só corpo. E como um só corpo, quando uma parte sofre todo o corpo sente. 

Essa experiência vivi bem forte dias atrás quando uma de nossas crianças chegou com um ferimento em um dos braços; uma queimadura por ferro de passar roupas que recebera de uma mulher após derrubar um vasilhame na cabeça do seu filho. O ferimento estava à mostra e não tinha recebido qualquer tratamento, exceto uma camada de pasta de dentes que a sua mãe, certamente com o intuito de aplacar a dor, teria passado. 

Não foi o primeiro caso e infelizmente parece não será o último. No entanto, este chamou mais a atenção pelo nível da violência. É difícil, revoltante, perturbador pensar que alguém, por qualquer que seja o motivo, seja capaz de ferir uma criança, inda mais num grau tão grande perversidade.  

No primeiro momento tratamos de levar a criança para um posto de saúde para receber os primeiros cuidados, o que nos tomou boa parte do dia. Foi um momento bastante difícil, doloroso mesmo vê-lo se contorcer em dores a medida que a enfermeira limpava o ferimento. Ele tentou se manter forte, mas sendo uma criança, não segurou as lágrimas por muito tempo. E posso dizer sem medo de errar que chorei com ele. Um choro por dentro de incorformação e revolta; não apenas pelo fato, mas por todo conjunto um de coisas: pela violência a que são sumariamente submetidas as crianças, pela falta de proteção e ineficiência das autoridades, pelo descaso das pessoas, pela minha limitação de não poder fazer mais por elas… 

Em fim, devemos por as mãos até onde alcançamos. Mas, o coração, este podemos colocar no lugar onde moram os nossos sonhos. E o meu está no momento em que situações como esta sequer ocuparão a memória de nossas crianças. Para ele, mais que para qualquer um foi doloroso este momento. E mesmo que a ferida cure, e já está bem melhor, as marcas serão bem mais profundas. De qualquer forma, sou imensamente feliz e grato a Deus pela oportunidade de compartilhar com ele este momento. E sinto mesmo, no fundo do coração, que o vínculo que já tínhamos cultivado entre nós não poderá ser desfeito por mais que os anos passem e as coisas mudem. 

E pela sua coragem em enfrentar este momento tão difícil ele recebeu o seu apelido: Puro-Sangue.

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Bel Air é verde… de esperança!

Posted by flaviosaudade em 17/05/2009

 

No dia primeiro de maio, em que foi comemorado o dia do trabalhador e da árvore, realizamos a nossa primeira roda na rua. A roda fez parte do lançamento da campanha Bel Air et Vert, ou Bel Air é Verde, que objetiva alcançar uma nova qualificação para o bairro que hoje é considerado uma Zona Vermelha pela ONU, por conta da onda de violência do passado.  

Estiveram presentes, entre outras autoridades, o Sr. Luiz Carlos da Costa, Adjunto principal da Secretaria Geral da ONU no Haiti, o  Embaixador e a Embaixatriz do Brasil no Haiti Sr Igor e Roseana Kipman, a Diretora da Fundação Africamérica Bárbara Prézeau, Rubem Cesar Fernandes, pelo Viva Rio. Na ocasião foram plantadas 300 mudas, cultivadas no canteiro de um dos projetos do Viva Rio em Bel Air.

Foi um momento extremamente importante para todos. Cerca de 80 capoeiristas, vestidos de branco, caminhando pelas ruas de Bel Air em direção à Praça da Paz. Berimbaus, atabaque, pandeiro, crianças e adultos; mandávamos o nosso recado: capoeira chegou para ficar, créditos ao Vinícius e Banden. Infelizmente, esta primeira caminhada não foi documentada, senão na lembrança e no coração. Mas, a apresentação…

 

Particularmente, acredito que a qualificação como Zona Vermelha não reflete mais a realidade de Bel Air, pois os níveis de violência estão bem abaixo de Cidades como o Rio de Janeiro, por exemplo, onde grupos fortemente armados impoem “leis” e o terror em diversas comunidades. Onde assistimos assaltos em sinais de trânsito, à pedestres e em plena luz do dia. No Haiti a classificação como Zona Vermelha perpetua um estigma que vem contribuindo para produzir profundas mazelas. A mudança seria um importante passo para adentrar definitivamente em um novo momento, de desenvolvimento, reconstrução, renovação.                                                             

 

Por fim, mais que uma caminhada o momento um sinal efetivo de que Bel Air realmente é verde, e verde de esperança.

 

 

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O Blanke, o Voleur Cabrit e o Bon Bagay

Posted by flaviosaudade em 01/05/2009

 

O Blanke

Há um tempo atrás enquanto via algumas fotografias antigas na casa de um tio tomei um susto ao me ver recém-nascido; tinha o cabelo negro, liso e um par de bolas de gude azuis no lugar de olhos. Com cerca de oito ou nove anos de idade o cabelo encrespou e os olhos esverdearam, passei a ser chamado de “Amarelinho da Shell”. Com dezoito anos, ao alistar-me no exército, fui classificado como pardo. Após iniciar na cartilha da capoeiragem aos quatorze e de me enveredar na história com um olhar mais experimentado e curioso senti mais forte a minha negritude e passei a ter orgulho dela.

Ao chegar ao Haiti a história mudou novamente. Aqui sou considerado branco, ou blanke. A princípio pensei que fosse pela população do Haiti ser de maioria negra e eu estar mais para o pardo. Porém, esta semana uma senhora me esclareceu melhor esta história. Após ser chamado de blanke perguntei o motivo, pois tínhamos quase a mesma cor. Segundo ela, ser um blanke não tem haver com a cor, mas com o idioma. Disse que eu seria um blanke por falar outro idioma e ainda que eu fosse negro e não dominasse o idioma, ainda seria considerado assim. Argumentei que não era branco, era brasileiro, que o brasileiro não era branco nem negro, era “a lot bagay”, uma outra coisa. Ela permaneceu na defensiva. Investi novamente. Perguntei como eu poderia ser um blanke se estava falando com ela em criole. Após refletir saiu pela tangente dizendo que ainda assim eu seria um blanke.

Esta é uma cena muito comum, vez ou outra os haitianos nos tratarem assim, algumas vezes de maneira irônica e outras com uma grande carga de ressentimento. Ambos muito compreensíveis a julgar pela forma que foi forjada a história deste país.

 

O Voleur Cabrit

Este ressentimento parece ter agravado com a presença internacional no Haiti. Pelo o que posso perceber existem haitianos contra e a favor da missão para estabilização. Os que são contra defendem a soberania da nação; os que são a favor dizem que não fosse a presença das tropas voltariam os conflitos. E uma história curiosa marca essa relação. Segundo um amigo haitiano, após um ano do início da missão um grupo de soldados jordanianos capturaram dois cabritos que estavam soltos na estrada. O povo prontamente respondeu os chamando de “voleur cabrit” ou ladrão de cabrito. O que era apenas uma forma de contestar a atitude dos soldados a acabou por se tornar um apelido para os membros da MINUSTAH, soldados, principalmente. Ou qualquer blanke que eles juguem fazer parte.

Eu também já tive o meu dia de voleur cabrit. A ocasião aconteceu em nossa primeira apresentação, no Tambou Lapé. Após cantarem conosco o Paranaê e outros cânticos um coro só tomou conta da multidão: voleur cabrit! Béhhhhhhhhh! Voleur cabrit! Béhhhhhhhhhhhh! Só fui entender o que eles diziam após ver as imagens e um haitiano nos explicar o significado e a história. Mas, a julgar pela receptividade anterior, ser chamado de ladrão de cabrito até que valeu a pena.

 

O Bon Bagay

Após a experiência de ser titulado pela multidão de “ladrão de cabrito”. E o que é pior, dançar enquanto o povo cantava, um refresco. Os brasileiros aqui, os soldados, principalmente, são conhecidos como “Bon Bagay, mais ou menos como o nosso “gente boa”. Segundo soube o apelido se deu por conta da atuação diferenciada da tropa. E, claro, contou com a afinidade dos haitianos com o Brasil, que em alguns casos beira, ou chega mesmo ao fanatismo. Muitos deles se dizem “fanatics” quando o assunto é o Brasil.

Pude presenciar um bom exemplo disso hoje pela manhã. Estávamos em um evento em comemoração ao dia internacional da árvore e do trabalhador na Praça da Paz. Muitas pessoas estavam presentes para a cerimônia, o embaixador, a embaixatriz, representantes da MINUSTAH, do Ministério do Meio Ambiente do Haiti e, claro, nossas crianças. Uma multidão aglomerou-se na rua, uns 200 metros de onde estávamos; uma correria. A população agredia um sujeito que, pelo que parece, tinha tentado furtar um cordão. Por sorte dele a tropa brasileira estava presente para efetuar a prisão e encaminhá-lo para as autoridades locais. A ação exigiu bastante paciência e sangue dos nossos soldados pois a população estava enfurecida. No entanto, tudo foi resolvido sem precisar recorrer à força. Por este e outras é que a nossa tropa é chamada os “Bon Bagay”.

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