Gingando pela Paz no Haiti

Relatos de um capoeirista em terras haitianas

Nem anjo, nem demônio

Posted by flaviosaudade em 07/11/2010

 

Um dia, em viagem com amigos a Santo Domingo, um homem se acercou do automóvel oferecendo-se para limpar o vidro. Como de costume, dissemos não precisar. E como de costume, ele já havia iniciado o serviço. Levantava a camisa mostrando uma deformação no peito e dizia ter fome. Podem ajudar com qualquer coisa, dizia ele com uma expressão de sofrimento, quase dor. Em meio a nossa contestação, dissemos vivermos no Haiti, quando o homem surpreso desatou a falar, dizendo que ficava muito preocupado com todo sofrimento do povo haitiano. Não sei como Deus permite isso, disse ele quando começou a alterar-se. Olha pra mim, e mostrou seus braços tomado por cicatrizes. Mas lá, é muito sofrimento! Até que se descontrolou. É uma desgraça atrás da outra! Uma desgraça atrás da outra! E outra! E outra! E fazia gestos como se golpeasse alguma coisa. Saímos com o carro um tanto apreensivos enquanto ele ainda demonstrava de forma enfática a sua imcompreensão.

Temos ouvido essas perguntas constantemente. Qual a razão de tanto sofrimento? Por que o Haiti, um país que já sofre tanto? Terremoto, doenças, ciclones… Realmente é impresssionante a acumulação de tantos problemas em um só lugar (metade de uma ilha, diga-se de passagem). Talvez seja humano julgar tudo isso um ato de injustiça divina. No entanto, acredito que tudo isso deve ter uma razão de ser. E hoje, após permancer em casa por dois dias por força do Tomas, ciclone que nos fez uma breve visita, acordei às 5:30 da manhã com essas perguntas fervilhando em minha cabeça. Desci para o café, ouvi Cesaria Evora, recordei amigos, senti saudade de uma Angola, apesar da Cesaria ser de Cabo Verde, comi pão com ovos, banana com mel… Mas as idéias permaneceram como as núvens cinzas que tomaram o céu da Capital estes últimos dias.

Por que?

Talvez as respostas tenham me encontrado. Pelo menos aquelas que respondem às minhas perguntas em particular. E hoje vejo que elas estiveram sempre aí, tão presentes nas desgraças, que faz sangrar as nossas almas, quanto nas alegrias, que nos cura muitas vezes sem que nos demos conta. Estiveram tão presentes no olhar de uma criança faminta quanto nas meninas que caminham de mãos dadas para a escola com seus uniformes coloridos e laços na cabeça. Estiveram tão presentes no semblante castigado de uma mulher que da vida aprendeu somente do trabalho quanto na imagem de um pai que vela o sono do seu filho em uma tenda. Estiveram tão presentes no olhar perdido de um velho que não pensava viver suficiente para ver tanta tristeza quanto na vitalidade de um moleque que parece uma borboleta que acabou de sair do casúlo. Estiveram tão presentes nos corpos em decomposição jogados pelas ruas quanto naqueles que dançam, que suam e que vibam ao som do tambor.

As respostas sempre estiveram lá, todo o tempo.

O Haiti é um exemplo para toda humanidade e um anúncio de que precisamos recriar a forma de nos relacionar com o mundo, com as pessoas, com nós mesmos. Que não podemos continuar consumindo o nosso tempo criando e recriando vícios antigos que nos torna pesados à nossa própria existência. O Haiti, este país que tantos dão graças por estarem longe e outros tantos se esforçam para estar perto, nos oferece a oportunidade para descobrir o que de melhor há em nós. O Haiti, onde exércitos das mais diversas nações uniram-se para salvar vidas e não para consumi-las, onde seres humanos das mais diferentes nacionalidades, com os mais variados costumes comungam no desejo de tornar menos sofrida a vida de pessoas que jamais viram. O Haiti, que nos ensina que existe uma nacionalidade apenas: a humana.

E quando olho para mim, quando me permito olhar realmente para mim, é que não tenho qualquer dúvida da importância deste país para todos nós. Quando recordo que antes do tremor perdi preciosos momentos da minha vida em disputar o quarto mais cômodo. Quando foi justamente neste quarto, preso e em desespero, que passei os segundos mais longos da minha vida e por pouco não encerrei aí esta minha existência. Quando lembro que me permitia gastar o meu punhado de areia fazendo senso de valores, é que não tenho dúvida do quanto podemos aprender com o Haiti. Com ele sigo aprendendo mais da vida, das pessoas e do amor, que é exercício. Quem não somos anjos nem demônios e que devemos nos esforçar para viver de maneira consciente, sem culpa pelo fomos, sem vergonha de aceitar o que somos, sem medo de desejar o que seremos. O Haiti mora em cada um de nós, quer desejamos ou não. E dou graças a esta terra e sua gente que me permite tornar-me mais humano a cada dia.

Por fim, ou por início, encontramos novamente o homem do sinal, que saltou de alegria ao nos reconhecer. Meus amigos do Haiti! Gritava ele enquanto lavava o vidro do carro com uma alegria contagiante. A vida dá muitas voltas, o mundo não pára de girar. É impossível dizer que nunca precisaremos que limpem o nosso vidro ou que não seremos nós a limpar os vidros dos outros.

2 Respostas to “Nem anjo, nem demônio”

  1. Gerson said

    Obrigado Flavio pelo texto.
    Expressa o que muitos de nós temos vivido durante esses últimos anos no Haiti, especialmente no interior de nossos corações e mentes.
    Tenho dito que após mais este período de trabalho retornarei ao Brasil em dezembro um pouco menor… mais frágil, menos auto-confiante, mais humilde, menos planejador do futuro…
    As tuas palavras acrescentaram… mais humano!
    Um forte abraço!
    Gerson

    • flaviosaudade said

      Prezado Gerson, agradeço pela sua mensagem.

      O Haiti realmente é um aprendizado para todos nós. Um aprendizado difícil, que se tornou ainda mais difícil após o terremoto.
      Particularmente, mais que ter de ver tanto sofrimento, é doloroso não poder fazer mais; sempre fica um gosto de que não fizemos
      tudo quanto poderíamos fazer. Porém, cabe a cada um de nós ter consciência da nossa constribuição e, efetivamente, tirar lições
      desta nossa experiência; caminhar para a humanidade, para a real humanidade, principalmente.

      Fraternal Abraço, Saúde e muita Paz.

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