Será possível considerar alguém culpado pelo seu silêncio? Não é difícil encontrar por aí inocente que seja obrigado a permanecer calado, ou culpado que declare inocência. Ainda que existam provas suficientes do contrário. No caso de Capitu, estamos diante de um dos julgamentos mais longos da história nossa literatura. Acusação e defesa apresentam seus argumentos diante de um júri atento. Cada detalhe, por menor importância que pareça ter, poderá representar a absolvição ou a condenação. Dentre eles, dois merecem ser considerados. O primeiro é o fato de a história se passar através da perspectiva do protagonista. O segundo, o ciúme, que surge vagarosamente e corrompe as páginas que pareciam estar predestinadas a qualquer veredicto, menos ao da incógnita.
Embora a história de Bentinho e Capitu provoque em nós as mais diferentes imagens, é preciso atentar para o fato de que, desde o início, as personagens e os acontecimentos são apresentados através da percepção do protagonista. Enquanto que uma história pode oferecer tantas versões quantos forem os envolvidos. Não apenas Capitu, mas todos os personagens, suas características, peculiaridades e até mesmo os possíveis desejos que lhes permeiam a alma eram descritos de maneira muito particular. Além disso, tal perspectiva apresenta fortes indícios de que o protagonista deseja induzir-nos a acreditar que a culpa precede o ato, quando parece insinuar que a inteligência e a sagacidade de Capitu poderiam ser apenas traços de uma tendência à obliqüidade e à dissimulação. Fato que pode ter uma agravante ainda maior, por sua percepção ter sofrido a influência de uma sociedade em que era costume a sujeição da esposa ao marido, quando o pensamento vigente era o de que a mulher deveria ser criada para debater a graça de um vestido, enquanto que o homem, o destino de um império. Sociedade que sempre tratou de forma muito particular “mulheres de espírito”, característica que em Capitu era denunciada desde a infância e que lhe rendeu os mais variados adjetivos.
Tal influência pode ter sido o elemento preponderante para que Bentinho se deixasse levar tão cegamente pelo ciúme. Sentimento que toma uma proporção tão grande que contamina até mesmo os momentos passados, quando o seu interesse por Capitu ainda não tinha se manifestado. Seu ciúme impregnava de tal forma seu imaginário e o angustiava, que mesmo o que se passava na cabeça da sua esposa era motivo de desconfiança. Ele busca por força uma confissão, fossem pelos gestos, fossem pelo olhar da esposa. Mas é ele quem confessa, quando afirma reparar em outras meninas. E é ele ainda, que afirma ter olhares mais que fraternais para a esposa do próprio amigo. Fosse o caso da culpa preceder o ato… Além do mais, Bentinho dizia amar tanto a Capitu, mas não relata em momento algum que levasse consigo alguma lembrança que seja da sua amada, como as fotos da sua mãe e a do amigo Escobar, que permanecem penduradas no escritório. Ou ainda que lhe tenha escrito alguma carta, pois, como ele mesmo diz, todas as outras foram endereçadas ao amigo, ou ainda ao Manduca, que mereceu várias. Dessa forma, fosse o ciúme um direito, a prioridade em gozá-lo possivelmente não seria sua.
Por fim, é bem provável que a grande incógnita que nos provoca e inspira, não tenha sido o mérito de a traição ter ocorrido ou não. Mas, a estranheza que Capitu desperta em nosso inconsciente e a necessidade que temos de nos apegar às nossas certezas. Talvez tenha sido esta mesma incógnita a única responsável pela casmurrice que tomou Bentinho. Aquele que, apesar de ter compartilhado da companhia de sua esposa desde a infância, parecia desconhecê-la; aquele que teve o amor, este sim, traído pela dúvida. E será possível o amor onde houver dúvida? Seja qual for o veredicto, o julgamento cabe à consciência de cada um. Assim como a alma de Capitu, que para Dom Casmurro e para nós, continuará em silêncio.