Gingando pela Paz no Haiti

Relatos de um capoeirista em terras haitianas

Archive for novembro \24\+00:00 2010

Colocando o bloco na rua

Posted by flaviosaudade em 24/11/2010

 

 

Após um longo período de espera, colocamos novamente o bloco na rua. Retomamos as apresentações nas escolas, atividade que teve de ser suspensa após o terremoto. A maior parte das intituições de ensino da Capital tiveram seus prédios destruídos ou bastante comprometidos, levando à suspensão das aulas. Outro fator, foi o regime de emergência a que passamos a atuar, o que nos levou a redefinir a estrutura e organização do projeto de forma a permitir absorver o repentino crescimento do número de alunos; por dia, atendíamos cerca de 500 pessoas das mais variadas faixas etárias. A maior parte delas moradores do campo que se formou em Kay-nou. 

O obejtivo das apresentações, além de divulgar o projeto e fortalecer as ações do Viva Rio é de divulgar a capoeira entre a população da grande Bel-air, principalmente. Com a propagação da capoeira fortalecemos a imagem dos nossos alunos quanto líderes e mobilizadores, ao tempo em que ampliamos nosso raio de ação e inspiramos mais jovens a prática da capoeira. Sem dúvida, o trabalho sempre aumenta a cada apresentação, a procura de pessoas interessadas em participar do projeto dá um salto a cada apresentação realizada. 

Um exemplo foi a primeira apresentação que marcou a retomada deste ciclo. Ela foi realizada no Lycé Perpetuele, em Bel-air, um escola improvisada que conta hoje com cerca de 3000 alunos. A apresentação ocorreu no horário destinado a rapazes, o que certamente proporcionou uma experiência especial. 

 

A primeira delas ficou por conta da apresentação de maculelê. Nossos alunos relutavam em vestir os saiotes, parte do paramento utilizado normalmente, confeccionado de palha-da-costa. A cultura haitiana é bastante machista e eles temiam serem chamados de “massissi”, homosexual em creole. Além disso, a maior parte dos nossos assistentes são provenientes das bases, dos núcleos, onde ser valente é um dos principais quesitos para ganhar espaço e respeitabilidade. 

 

A cobrança foi tanta que um dos alunos falou para o Arrebite, um de nossos assistentes que talvez fosse o mais resistente, que ele teria de apresentar uma coisa muito boa para justificar “botar saia”, pois do contrário ele iria apanhar. 

 

Reunimos todos. Disse-lhes que aceitaria a decisão deles, mas que aquela era uma oportunidade importante para eles mostrarem o que aprenderam e que eu estaríamos ali para ajudá-los, cantando e batendo o atabaque para que eles mostrassem isso. Mas, se fosse realmente difícil para eles, poderiam apresentar apenas com as calças. Nos posicionamos e fizemos o toque de chamada. Grande foi a minha surpresa quando os vi entrar em fila na roda vestindo os saiotes. 

 

Não tenho dúvidas de que fora difícil a decisão, de que tenha exigido de cada um deles uma profunda reflexão, enfrentamento e ruptura de preconceitos. Naquele momento eles avançaram mais um degrau em sua formação, na personalidade de cada um. A vitória foi de todos para a alegria de todos. Ninguém foi chamado de massissi e o Arrebite não apanhou… 

O que impressionou foi a organização dos jovens, que mesmo sem que pedissêmos rapidamente formaram uma roda, ocupando muros, lajes. Além disso, a disciplina e o respeito foram exemplares; apesar da euforia, dos gritos todos, todos eles respeitavam quando pedíamos silêncio ou quando pedíamos que respeitassem o espaço destinado à roda. 

 

Alguns mais ousados entraram na roda e ensaiaram uma ginga; outro duelou com o Canguru no hip-hop (e mandou bem, devo dizer…). Porém, o aprendizado maior ficou por conta de outro que convidou o Ligeirinho para jogar. Antes de aceitar o convite, o Ligeiro o colocou para jogar com a Saúva, que também não dá espaço. E para fechar, o Ligeiro comprou o jogo. Porém, na falta de conhecimento, o jovem  disparou alguns socos no ar. E foi só levantar a perna e tomar uma bela de uma rasteira do Ligeiro. Bem, Bimba dizia que “feio não é cair. Feio é cair de bunda”. E foi o que aconeteceu. Para a nossa surpresa a galera foi ao delírio! Gritos! Palmas! Gargalhadas! Aproveitamos o momento para ensinar. Dissemos que todo mundo cai e tem de cair para aprender a levantar. 

 

A roda seguiu um pouco mais, até que o sol desse aviso: Iê vamos simbora, que tá na hora camará!

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Identidade: Capoeirista!

Posted by flaviosaudade em 15/11/2010

 

Caiana, Pitomba , Moranguinho e Dandara

 

Estamos nos aproximando de mais um evento; o segundo batizado e graduação de nossos alunos. Sem dúvida, um momento muito especial para todos nós. Muitos alunos aguardam ansiosos pelo batismo e outros para receber as suas novas graduações. No primeiro ano participaram do evento 150 alunos. Este ano, contamos com cerca de 380, entre crianças de 3 anos até adultos de 45. Um exemplo de que a capoeira está se popularizando em terras haitianas e atraindo cada vez mais pessoas, das mais diferentes faixas etárias. 

Dentre as inúmeras atividades que teremos de produzir, talvez dar o nome aos alunos seja a mais difícil. É realmente uma grande responsabilidade oferecer um nome pelo qual o aluno será chamado por toda a sua vida, ou até para depois dela, como é dito no filme do Besouro. É um processo que exige atenção, cuidado. Um apelido pode tanto despertar o aluno para o aprendizado como comprometer o seu rendimento. Neste sentido, cabe ao educador ter o máximo de cuidado para oferecer não oferecer um nome que o deprecie, pelo contrário represente uma característica forte ou um traço físico marcante. Claro, há aqueles que recebem apelidos cômicos, como é o caso de um de nossos alunos, o Pinto-solto, que recebeu este apelido por viver todo o tempo digamos… se coçando. Ou ainda o Bandalha, Cortiço, Cascalho, Desastre, que dispensam comentários. A turma da desordem, como chama um dos nossos educadores, o Ligeirinho, nomeou um deles, o Xerife, aparentemente o líder, para tomar conta dos outros. E o resultado foi bastante satisfatório. Se o que eles procuram, muitas das vezes, é esta própria liderança, sobressair-se no grupo, imagina quando lhe pedem para fazer isso, oficialmente. Naturalmente a postura muda, uma postura maior de responsabilidade é facilmente perscepitível. 

Diferententemente ao primeiro batizado, desta vez aconteceu algo diferente que me deixou realmente bastante alegre. Os próprios alunos começaram a pedir seus nomes a medida que viam os seus amigos receberem os seus. Entregávamos um papelzinho com o nome para que eles decorassem. E todos faziam questão de ler. Após receber o papel, com todos sentados em roda, cada aluno ficava de pé e dizia o seu apelido. Todos repetiam e aplaudiam. 

Tantos nomes, tão diversificados quanto o nosso grupo. Um processo que me tirou o sono em algumas noites… Açucena, Lamparina, Urucum, Marimba, Irajá, Capitú, Alfazema, Tulipa, Bambolê, Moura, João-de-barro, Xadrez, Nogueira, Cana-brava, Pirilampo, Finta, Brinco, Guaraná, Dália, Cascatinha, Tucaninho, Itaú, Guaxinir, Sururu, Jururu, Arisco, Ipiiba, Lucuri… E por aí vai. 

Os apelidos realmente representam uma transformação na vida de cada um deles, dos jovens principalmente, que dizem com orgulho serem capoeiristas. E quanto mais problemas tenha tido o jovem antes de ser apresentado à capoeira é que a transformação é maior, percebida na postura e na forma de lidar com os problemas, principalmente.

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A Lagarta e a Borboleta

Posted by flaviosaudade em 12/11/2010

 

Estes dois anos de Haiti me proporcionaram algumas experiências interessantes e renderam boas histórias. Aqui é quase impossível um dia passar sem uma novidade, um fato inusitado. Nas atividades com nossos alunos, principalmente. Sempre acontece alguma coisa que rompe com a rotina, seja um problema novo ou um fato cômico, que nos oferece uma oportunidade de aprendizado, exigindo atenção especial, ou que nos descontrai e nos faz rir. 

Um desses fatos acontecerem alguns dias atrás. Estávamos no meio de uma e nossas aulas, quando resolvi dar uma volta fora do espaço onde nossas atividades acontecem. Durante essas caminhadas sempre recolho algum lixo, mando alguns alunos para casa após as suas aulas, converso com um ou com outro… Mas neste dia foi diferente. 

Enquanto caminhava com as crianças, vimos uma lagarta no meio do caminho, era grande e verde e se esforçava em arrastar-se. Claro, ela logo chamou a atenção das crianças que se divertiam vendo o esforço da visitante. Fui até um canto e busquei um pedaço de pau. Assim que cheguei perto da lagarta Cambaxirra, um de nossos alunos, pediu para que eu a matasse. Mata! Mata! Dizia ele sorrindo. Enquanto pegava a lagarta e colocava em um canto seguro expliva a ele que não iria fazer isso pois ela não fazia mal algum para nós. E que ela, como nós, tinha todo direito de viver. E ele teimava em dizer que eu tinha que sacrificá-la. Assim que dei as costas por alguns minutos ele a trouxe de volta e começou a brincar com ela. Ou seria melhor dizer… judiar dela? Mais uma vez peguei a lagarta e coloquei num canto. E agora um pouco mais duro lhe disse que ele deveria protegê-la, que ela estava rastejando daquela forma, mas logo teria asas e voaria muito alto. O dia terminou e voltamos para casa, como sempre bem exaustos da longa jornada. 

No dia seguinte, enquanto nos preparávamos para dar início ao treino com os nossos assistentes uma grande borboleta invadiu o espaço; voava no centro do espaço como se visse trazer um recado. Chamei o Cambaxirra, que veio correndo, mostrei-lhe a borboleta e disse: Está vendo só, ontem você queria matá-la. Hoje ela veio mostrar a você no que ela se transformou. Ela veio aqui pra você. E da mesma forma que ela se transformou e conseguiu voar e ser livre, você também é capaz. 

Ele me olhou, abriu um largo sorriso e saiu pulando e gargalhando de alegria enquanto foi chamar outros alunos para ver a borboleta. Ou seria mariposa? Em fim, não importa… Importa que naquele dia conseguimos aprender juntos com uma coisa tão simples. Provavelmente aquela borboleta não era a lagarta, pois nunca ouvi dizer que uma lagarta precisa apenas de um dia, ou menos disso, para realizar a sua transformação. Mas, de uma coisa estou certo, o Cambaxirra não matou a lagarta assim que dei as costas, o que era o meu medo, pois do contrário ele teria dito e toda história perderia o sentido.

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Nem anjo, nem demônio

Posted by flaviosaudade em 07/11/2010

 

Um dia, em viagem com amigos a Santo Domingo, um homem se acercou do automóvel oferecendo-se para limpar o vidro. Como de costume, dissemos não precisar. E como de costume, ele já havia iniciado o serviço. Levantava a camisa mostrando uma deformação no peito e dizia ter fome. Podem ajudar com qualquer coisa, dizia ele com uma expressão de sofrimento, quase dor. Em meio a nossa contestação, dissemos vivermos no Haiti, quando o homem surpreso desatou a falar, dizendo que ficava muito preocupado com todo sofrimento do povo haitiano. Não sei como Deus permite isso, disse ele quando começou a alterar-se. Olha pra mim, e mostrou seus braços tomado por cicatrizes. Mas lá, é muito sofrimento! Até que se descontrolou. É uma desgraça atrás da outra! Uma desgraça atrás da outra! E outra! E outra! E fazia gestos como se golpeasse alguma coisa. Saímos com o carro um tanto apreensivos enquanto ele ainda demonstrava de forma enfática a sua imcompreensão.

Temos ouvido essas perguntas constantemente. Qual a razão de tanto sofrimento? Por que o Haiti, um país que já sofre tanto? Terremoto, doenças, ciclones… Realmente é impresssionante a acumulação de tantos problemas em um só lugar (metade de uma ilha, diga-se de passagem). Talvez seja humano julgar tudo isso um ato de injustiça divina. No entanto, acredito que tudo isso deve ter uma razão de ser. E hoje, após permancer em casa por dois dias por força do Tomas, ciclone que nos fez uma breve visita, acordei às 5:30 da manhã com essas perguntas fervilhando em minha cabeça. Desci para o café, ouvi Cesaria Evora, recordei amigos, senti saudade de uma Angola, apesar da Cesaria ser de Cabo Verde, comi pão com ovos, banana com mel… Mas as idéias permaneceram como as núvens cinzas que tomaram o céu da Capital estes últimos dias.

Por que?

Talvez as respostas tenham me encontrado. Pelo menos aquelas que respondem às minhas perguntas em particular. E hoje vejo que elas estiveram sempre aí, tão presentes nas desgraças, que faz sangrar as nossas almas, quanto nas alegrias, que nos cura muitas vezes sem que nos demos conta. Estiveram tão presentes no olhar de uma criança faminta quanto nas meninas que caminham de mãos dadas para a escola com seus uniformes coloridos e laços na cabeça. Estiveram tão presentes no semblante castigado de uma mulher que da vida aprendeu somente do trabalho quanto na imagem de um pai que vela o sono do seu filho em uma tenda. Estiveram tão presentes no olhar perdido de um velho que não pensava viver suficiente para ver tanta tristeza quanto na vitalidade de um moleque que parece uma borboleta que acabou de sair do casúlo. Estiveram tão presentes nos corpos em decomposição jogados pelas ruas quanto naqueles que dançam, que suam e que vibam ao som do tambor.

As respostas sempre estiveram lá, todo o tempo.

O Haiti é um exemplo para toda humanidade e um anúncio de que precisamos recriar a forma de nos relacionar com o mundo, com as pessoas, com nós mesmos. Que não podemos continuar consumindo o nosso tempo criando e recriando vícios antigos que nos torna pesados à nossa própria existência. O Haiti, este país que tantos dão graças por estarem longe e outros tantos se esforçam para estar perto, nos oferece a oportunidade para descobrir o que de melhor há em nós. O Haiti, onde exércitos das mais diversas nações uniram-se para salvar vidas e não para consumi-las, onde seres humanos das mais diferentes nacionalidades, com os mais variados costumes comungam no desejo de tornar menos sofrida a vida de pessoas que jamais viram. O Haiti, que nos ensina que existe uma nacionalidade apenas: a humana.

E quando olho para mim, quando me permito olhar realmente para mim, é que não tenho qualquer dúvida da importância deste país para todos nós. Quando recordo que antes do tremor perdi preciosos momentos da minha vida em disputar o quarto mais cômodo. Quando foi justamente neste quarto, preso e em desespero, que passei os segundos mais longos da minha vida e por pouco não encerrei aí esta minha existência. Quando lembro que me permitia gastar o meu punhado de areia fazendo senso de valores, é que não tenho dúvida do quanto podemos aprender com o Haiti. Com ele sigo aprendendo mais da vida, das pessoas e do amor, que é exercício. Quem não somos anjos nem demônios e que devemos nos esforçar para viver de maneira consciente, sem culpa pelo fomos, sem vergonha de aceitar o que somos, sem medo de desejar o que seremos. O Haiti mora em cada um de nós, quer desejamos ou não. E dou graças a esta terra e sua gente que me permite tornar-me mais humano a cada dia.

Por fim, ou por início, encontramos novamente o homem do sinal, que saltou de alegria ao nos reconhecer. Meus amigos do Haiti! Gritava ele enquanto lavava o vidro do carro com uma alegria contagiante. A vida dá muitas voltas, o mundo não pára de girar. É impossível dizer que nunca precisaremos que limpem o nosso vidro ou que não seremos nós a limpar os vidros dos outros.

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