Gingando pela Paz no Haiti

Relatos de um capoeirista em terras haitianas

Fio de luz. O início de uma história

 (Os novos textos serão postados um após o outro)

 

Parte I

 

Correu pelos becos escuros sem quase enxergar o que estava à sua frente; um labirinto repleto de esquedas e direitas, de sobes e desces. Arrastava uma sandália velha amarrada por fios que por vezes tentava escapulir e que o fazia mancar às vezes. A lua no céu brincava de esconder. Ele saltava das sombras enquanto ia ligeiro desviando das valas que mais pareciam serpentes pelo chão e que repentinamente abriam as suas enormes bocas e punham a mostra as suas víceras. Grandes panelas sobre a lenha em brasa pelo caminho lembravam dragões a cuspir fogo e vapor quente. Mas, já era tão íntimo que pouco se importava. Gente, muita gente fazendo de tudo. A luz fraca de um candeeiro ou de uma vela saltava vez ou outra dos barracos iluminando o caminho. Até que deu na rua. 

Uma pequena multidão. Tudo parecia um prenúncio de confusão. Um falatório onde ninguém parecia se entender ou querer entender alguém. Bacias, baldes, vazilhames. Crianças fazendo correria aproveitavam a noite clara. Àquela época o céu era quase sempre limpo e com estrelas todas as noites, salvo quando chegavam a época dos furacões. Diziam que naquele ano seriam em torno de 27. Não gostava nada dessa época; as ruas transbordavam, o lixo tomava conta de tudo e tinha de dar uma volta grande para chegar a qualquer lugar. Vez ou outra alguém era engolido por um buraco, destes que vivem à mostra nas ruas, e só ia ser achado longe dali, no mar. Até alguns de seus amigos. Sumiram de repente e foram ser encontrados dias depois. Ficava pensando como teria sido a sensação deles enquanto eram arrastados. No quê estariam pensando? Será que poderiam gritar, tentar agarrar em alguma coisa? Ou será que já não sentiriam mais nada? Em fim, este era só mais um dos muitos pensamentos que povoava a sua cabeça. 

Tentou com dificuldade expremer-se entre a multidão. Levou um solavanco e uma soma de estigmas. O semblante carregou. Respondeu atravessado e foi arrastado pela camisa e jogado pra longe. Caído, passou a mão e duas ou três pedras. Ameaçou. Voltou atrás e saiu. Mas, chegasse em casa de mãos vazias seria muito pior. Afastou e ficou observando. Hora a multidão que parecia se degladiar, hora a correria das outras crianças, hora ouvia o cricrilar dos grilos, hora não via nem ouvia coisa alguma. A barriga reclamava. Saiu. Desceu a rua. Tentou acertar um cachorro com as pedras. Avistou um blanke estacionando o carro e se aproximou. Fez um gesto em círculos com uma das mãos sobre a barriga e estendeu a outra. Conseguiu uma moeda com que pagou um amigo para trazer-lhe um balde com água. Pronto. Saiu equilibrando o balde sobre a cabeça.

 

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Acordou quase antes do cantar do galo. A barriga reclamando mais do que quando tinha se deitado. Parece que ter feito o gesto sobre ela na noite anterior a acordou para não mais dormir. Ainda tentou se deixar levar pela preguiça, mas a reclamação era maior. E ainda tinha que buscar água novamente. Quase toda manhã era a mesma coisa. Levantou meio atordoado. Vestiu uma camisa que a gola quase passava pelos ombros. Calçou as sandálias com cuidado para não se arranhar nos fios. Parece que tinha parado no tempo, parece que não crescia. Suas roupas teimavam em ser maiores do que ele. Algumas fazia parecer que estava mesmo em um saco. Pegou o balde e saiu.

O sol já estava a pino quando chegou ao ponto de distribuição de água. Mais uma pequena multidão aguardava com tudo quanto é tipo de potes, vazilhas. A mangueira ia de uma a uma. Balde na cabeça e lá se ia equilibrando mais uma pessoa. Encontrou um amigo. Como você está, perguntou? Mais ou menos, respondeu o amigo. Olhou para um dos braços do outro. Um ferimento grande. O que foi isso? Perguntou. Uma mulher tinha o queimado com ferro de passar roupas após ele ter deixado cair alguma coisa na cabeça do filho dela. Ela se enfureceu e o queimou. Ah, que nada! Fala a verdade. O que você estava fazendo? Você tentou roubar alguma coisa na casa dela? Ow! Fez com espanto o amigo. Não sou vouler! E fechou a cara. Mas, estava apenas encarnando. Você tem de passar um remédio aí, disse apontando para o local do ferimento. Minha mãe passou pasta de dente. Já está bom. Mas vai ficar cheio de micróbio, retrucou. Micróbio não mata haitiano, disse com um tom de austeridade. 

Derepente uma confusão perto dali. Não demorou para a maioria dos baldes ficarem sós e a água escorrer toda ela pela rua abaixo. Correram para ver o que era. Uma confusão onde ninguém parecia se entender. Cada um falava uma coisa. Aproveitou o tamanho, ou a falta dele e se embrenhou em meio a multidão. Um homem sentado no chão, ensangüentado. Balbuciava palavras enquanto se cortorcia. Outros à sua volta o agredia de quando em vez. Uma série de palavrões. Aparentemente um voleur, um ladrão. Um desses que se escondem nos becos e aproveitam a escuridão das ruas para roubar dinheiro e mercadoria das pessoas que saem para trabalhar mal o sol desperta. Uma mulher falava sem parar, gesticulava apontando para ele. Um cesto revirado, mangas pelo chão. Ela levantava as mãos para o céu e apontava para o homem no chão. Ele fazia gesto que não. E mais agressões. Pau. Pedra. Muitos sorriam. Uma falatório geral. Já não enxergava direito pelo sangue que descia pelo rosto. Pau. Pedra. Socos. Derrepente um correria. Chegaram as tropas. Muitos ainda insistem em atacar o homem que já começa a desfalecer. Armas em punho. Gritos de ordem. Afasta! Afasta! Logo o homem é cercado. A população insiste em continuar o linchamento. Gritam. Vouler! Vouler! Clima tenso. Chegam mais pessoas. Arma na mão. Adrenalina alta. São tantos! Parecem formigas saindo do fomigueiro. Muita conversa. Muita negociação. Em fim o homem é removido para o carro. A população em volta. Revolta. As tropas saem. Missão cumprida. Aos poucos tudo volta ao normal. Baldes. Vazilhas. Água. 

 

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Perdeu a noção do tempo. Precisava correr. A hora tinha passado e precisava levar a água para casa. Saiu meio desengonçado e às pressas. Boa parte da água ficando pelo caminho. Seria muito com que ele conseguisse chegar com pelo menos a metade da vazilha cheia… Chegou em casa. Mas onde é que você estava? Estava tentando pegar água. Tinha muita gente. E levou todo este tempo?! Está brincando comigo ou o quê?! Não estou não. Estou dizendo a verdade. Ahrg! Sai já daqui. E saiu. 

No caminho encontrou um outro amigo com uma bola. Então. Vamos jogar? Vamos sim. Vamos lá pro campo. Encontraram outras crianças. Um pedra. Alguns passos e outra pedra. Mais uma pedra. Mais alguns passos e uma outra pedra. Pronto. Escolheram os times e o jogo começou. Bola pra cá. Bola pra lá. Correria. Passa! Passa! Chuta! Goooooool!!!! Não foi! Claro que foi! A bola passou por cima da pedra. Ow! Não passou não! Você está roubando. Ow! Tá me chamando de ladrão? Tô sim. Briga. Tapas. Socos. Gritaria. E logo uma pedra. Logo uma pequena multidão envolta. Separa. Muita gente falando. Achando. Ele me chamou de vouler. Ele é que está tentando roubar. Me dê a bola aqui. Acabou a brincadeira. A bola é minha, gritou o amigo. Agora não é de ninguém. Mas você não pode pegar a bola dele. Ow! Quem você pensa que é? E levou um safanão. Fechou a cara. Me larga. E as lágrimas começaram a correr. A mão apertava. O braço franzino sentia. Mais um solavanco. Fala! Me larga! E a raiva já tomava de todo. Já nem conseguia ouvir direito o que as pessoas falavam. Muitas pessoas. Da próxima vez você vai ver, hein! E o rosto carregado. Pedras. Pedras. Agora vai embora daqui. Não quero mais te ver por aqui. Está ouvindo? Só vive fazendo desordem. E saiu. 

Ficou à espreita. Atento. O outro estava a conversar. Logo esqueceu. Ele não. Esperava apenas o melhor momento. Alguns minutos passaram. Caminhou entre as pessoas. Ela estava em cima do balcão. Esperou duas pessoas entrarem na loja e seguiu atrás delas escondido. Assim que se aproximou surgiu do nada e pegou a bola. Saiu correndo, gargalhando. Pega! Pega! Pega! O coração acelerado. Sequer olhava pra traz. Tap-taps passando. Meteu-se pelo mercado em meio as pessoas. Parou. A respiração ofegante. Olhou em volta. Ninguém. A alegria tomou todo o corpo. Nas mãos o troféu. 

Caminhou pelo mercado. Um mundo de pessoas e de coisas. Roupas. Tênis. Utensílios diversos. Olha que tênis bacana. Olha aquele outro! Bon bagay! Demais! Chegam mais caixas. Mais roupas, tênis, bolsas. Doações. Algumas pessoas pegam as caixas e carregam para lugares diversos. Roupas bacanas. Olha aquela lá. Talvez daria nele. Olha aquelas sandálias. Já estava na hora de trocar as dele.  Nessa última carreira quase não sobra nada dela. Algumas pessoas faziam um tipo de triagem e já chegavam pessoas para comprar mal a caixa era aberta. Malhas. Calças. Blusas. Sapatos. Bolsas. Cintos. Saiu. 

Fez outro caminho para chegar ao campo. Estavam todo lá. Ué. Onde é que você estava? Pensei que tinham sumido com você. Que nada. Toma. Como é que você conseguiu pegar de volta? Aha! Sou bem mais esperto do que ele. Ele não é de nada. Ah, tá bom. Vi bem você quando ele estava te segurando. Ficou cheio de medo. Fiquei nada. E a bola era sua e não minha. Eu sei disso. Mas eu é que não iria dizer nada. Apanhar a toa? A toa? Agente não fez nada. Mesmo assim. Não sou maluco. 

O que é que você está fazendo? Estou esperando o jogo do Brasil começar. É verdade! E vai jogar contra quem? Contra a Argentina. É isso aí! Vamos acabar com eles! Você está de brincadeira, falou enquanto se aproximava. Brincadeira nada, você vai ver. Vou ver sim, a Argentina acabar com o Brasil, isso sim. Você tá maluco. Maluco? Então vamos ver. A Argentina é melhor que a seleção brasileira, todo mundo sabe. Falou mais um. Quem tem mais títulos de campeão do mundo? Quem? E o que é que tem isso? Isso não quer dizer nada. Ow! Como não? A sua seleção tem um Robinho, um Ronaldinho Gaúcho. Tem? Tem o Messi… Não tem nem comparação. Falou mais outro. Quer comprar eles com um Robinho? É bonbagay! Pegou a bola. Jogou na frente e saiu ensaindo pedaladas. Robinho bonbagay. Brinca com a bola. Pedala. Pedala e goooooool!!!!!!  É isso aí! Robinho bonbagay! Robinho bonbagay! Messi bonbagay! Revidou outros! Messi bonbagay! Robinho bonbagay! Messi… Robinho… Robinho… Messi… Robinho… E o jogo começou. 

As poucas tvs eram muito disputadas. Quase não dava para ver direito a bola correr. Se espremeu. Conseguiu um bom lugar. Acocorou. Uma narração monótona se comparada às narrações do Brasil. Mas a emoção era enorme. Cada passe. Cada drible. Cada possibilidade de gol. Cada falta. Olhos vidrados. Total atenção. Nervos a flor da pele. Hoje eu vou beber muitas prestiges na sua conta! Ow! Tá de brincadeira? Logo-logo os argentinos mentem um gol e aí você vai ver. Hoje eu vou beber até cansar! Isso é o que vamos ver. E o jogo rolando. Emoção a cada lance. Contra-ataque. Lançamento. Linha de fundo. Cruzamento. Corte. Sobra de bola. Chute. E é gooooooooooooooooooool!!!! Explosão. Delírio. Pulos. Gritos por toda cidade. Brasil! Brasil! Taxis com bandeiras verde e amarela nos retrovisores. Goooooooooool! Buzinas. Buzinas. Pessoas com camisas da seleção canarinho. Final de jogo. Haiti verde e amarelo.

5 Respostas to “Fio de luz. O início de uma história”

  1. Marilia Machado said

    É necessário que o Haiti construa sua própria identidade, sem interferências que firam sua individualidade, enquanto um país que tem uma história de lutas e vitórias. É imprescindível que o haitiano se sinta um cidadão do mundo. Haiti não é só futebol

    • flaviosaudade said

      Oi Marília, perdoe a demora em responder.

      Concordo com você. E não tenho dúvidas de que a luta do Haiti pela liberdade ainda continua forte, apesar das interferências. No entanto, penso que o diálogo do povo haitiano com o mundo e a sua escolha em assimilar outras culturas também ocorre por escolha do próprio haitiano. Além dos resquícios da cultura européia, que traz contradições como usar roupas sociais em um clima muito quente, é possível ver o gosto pelas coisas dos EUA muito forte, principalmente entre o público jovem. Por tanto, acredito que ele esteja desfrutando da liberdade de escolha. É assim não somente com o futebol, mas com o basquete, o hip-hop, o reggae e agora a capoeira; a dança… E este diálogo, penso, é imprescindível para que este povo consiga até mesmo valorizar ainda mais a sua história.

      Fraternal abraço

  2. Marilia Machado said

    Gostaria de continuar recebendo suas mensagens. Apesar de nunca ter visitado o país, tenho opinião formada a respeito de sua situação.Acho interessante conhecer a opinião de quem convive com essa realidade.Gostaria de saber, por exemplo, como é vista, no Haiti, a ação dos Jacobinos negros e Toussaint Louverture.

  3. Catharine said

    Homens discutem demais enquanto as crianças tem fome, os jovens necessitam de trabalho e os anciões sonham com um mundo de paz. Atitude, trabalho, exemplo e perseverança alimentam a alma humana.
    Deixemos o demagogismo e os discursos patriotas um pouco de lado e ergamos as mangas ao trabalho que já tardia aos olhos dos que perdidos, lutam por muito mais do que um pedaço de pão.
    O tempo urge e não deixa mais espaço para devaneios. É preciso homens de atitudes mais do que palavras.
    Beija-flor

    • flaviosaudade said

      Concordo contigo Beija-flor, que canta pouco e muito age, sempre em movimento.
      Obrigado pelo comentário e aguardamos você em novembro.

      Fraternal Abraço

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