Gingando pela Paz no Haiti

Relatos de um capoeirista em terras haitianas

Nos braços da Paz

Posted by flaviosaudade em 24/02/2012

 

Mais uma manhã. O sol aos poucos se levanta anunciado pelo cantar dos passarinhos. Um vento faz balançar as folhas das arvores lá fora. Desde as cinco a conversa das pessoas que iniciam mais um dia de trabalho. As seis o barulho da vassoura começa no quintal enquanto algumas mulheres já estão com os seus cestos cheio de frutas nas calcadas. Levanto para preparar o café, abro janelas e portas. Ainda estou no Haiti.

 

Após uma noite tranquila, hoje tinha tudo para ser um dia perfeito; sexta-feira, aquele sentimento bom de final de semana… Mas, infelizmente não seria. Aquela manha não iriamos aa Kay-nou para encontrar nossos assistentes, para fazer a avaliação das aulas. Eu não iria chamar atenção para a nossa planta sofrendo sob o sol ou para as cadeiras que estavam espalhadas no espaço das aulas. Naquela manha iriamos dar o ultimo adeus ao nosso amigo Fenelon, que havia nos deixado apos ser brutalmente assassinado a tiros na manha do dia 9 de fevereiro.

 

Fenelon foi o primeiro colaborador do Viva Rio em terras haitianas. Usava com frequência um relógio frouxo no pulso, camisa de botão e um anel no dedo anelar direito que me fazia recordar os veteranos das comunidades cariocas. Usava um bigode sempre bem aparado, que ajudava a compor um sorriso que não costumava economizar. Após descobrir e gostar de samba, não dispensava a musica vodu e a imagem de Ogum, conhecido assim tanto no Brasil quanto no Haiti, no retrovisor. Personificava a figura do bom malandro, amigo de todos, dono de uma personalidade perspicaz e envolvente, discreto e sempre atento. Pelas suas mãos, ao volante, conduziu o Viva Rio pela terra dos Loas. Conhecia como ninguém as ruas e os becos mais remotos, o que lhe concedeu o título de JPS. Sempre bem informado era para nos, assim que chegamos, a principal fonte de informações sobre possíveis riscos. Pagwen problem… não tem problema… respondia quando perguntávamos sobre a possibilidade de passar pelo centro da cidade em períodos de manifestação. Pa kapab soti, Flavio! Alertava para não sairmos de casa durante o período das eleições. Há época dizia que se fôssemos sair deveríamos escrever os nossos nomes na sola do pé, para o caso da necessidade de uma possível identificação do corpo… E caia na gargalhada enquanto nos, que caímos no Blague, na brincadeira, ficávamos imaginando a dimensão dos riscos. Mwen kenbe la kay ak madame mwen. Ele tinha razão, era melhor opção ficar no aconchego do lar com a esposa…

 

*          *          *

Após um breve velório em Kay-nou, centenas de pessoas, vestidas com o eterno sorriso de Fenelon ganhou as ruas. Á frente do carro fúnebre a fanfarra, projeto de música do Viva Rio, abria caminho. Apos assistir um culto em uma igreja cheia, o cortejo ganhou novamente as ruas até o cemitério. No portal uma frase: lembre-se que você é poeira! Após caminhar um pouco chegamos ao jazigo onde seria depositado o caixão. As pedras, depositadas uma a uma e o cimento cerrou o corpo, mas o espirito do nosso amigo, ele avoa bem alto.

 

O disparo que acertou Fenelon não nos tirou apenas um amigo, mas fez sangrar as nossas esperanças. No entanto, apesar da tristeza é maior o sentimento de seguir em frente, com ainda mais coragem em seu nome e de todos aqueles que tombaram ate hoje pela violência. Fenelon passa a fazer parte da grande constelação de heróis que lutaram por um mundo melhor, livre de injustiças e de crueldades. E que apesar do seu anonimato e da sua humilde ferramenta de luta foi tão grande quanto qualquer outro. E estará sempre conosco, sobretudo nas en-cruz-ilhadas deste país. Momento em que precisaremos apenas chamar por “Saint Fenelon” para que ele nos guie pelo caminho certo.

 

Que seja santo todo ser humano que serve ao propósito da Paz.

2 Respostas to “Nos braços da Paz”

  1. Cabeleira said

    Flavio,
    Fazia um bom tempo que não entrava no blog.
    Quando leio seus textos, duas coisas sempre ajudam a reforçar minha admiração pelo seu trabalho: sua resistência e também a honestidade com que você expõe seus sentimentos.
    Meu irmão, de vez em quando me desanimo com algumas atitudes no mundo da nossa capoeira. Mas saber que aí no Haiti você continua na sua batalha diária, mesmo com as mais terríveis dificuldades, isso é um exemplo real e concreto de que na nossa arte existe gente boa e bons trabalhos.

    Grande abraço (um dia a gente ainda se conhece pessoalmente),
    Cabeleira

  2. Fala Flávio tudo bom?
    Saudades amigo, sentimos falta também de notícias sobre o Haiti e sua longa jornada. Escreva mais.

    Grande abraço Jatobá

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